Caminhada Compartilhada
A vida sempre traz a necessidade de adaptação a determinadas situações e à superação de sucessivos desafios. Muitas vezes nosso roteiro parece ser alterado repentinamente pelo autor e o desfecho nos surpreende e impõe enormes obstáculos, seja na nossa própria vida seja na vida das pessoas que nos cercam.
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Falar em pessoas com deficiência sempre é delicado e às vezes difícil. Qual é o limite entre a individualidade, que merece ser reconhecida e valorizada, e a limitação que vulnerabiliza e exige proteção e cuidado? Nossa estrutura de organização social e relacionamentos interpessoais, enquanto humanos, é imperfeita por definição. Procuramos fazer o melhor que podemos, mas claramente não se conhece a resposta correta para todas as questões da vida.
Alguns de nós, seja por causas genéticas, enfermidades ou acidentes, vivem grandes limitações, físicas ou mentais, que acabam lhes impondo desafios maiores que aqueles diariamente enfrentados pela maioria das pessoas. Para a proteção adequada dos interesses dessas pessoas é que foi promulgada, em julho de 2015, a Lei nº 13.146, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Um dos seus principais enfoques é o reconhecimento de que a pessoa com deficiência é um sujeito de direitos que deve ter preservado, ao máximo, o exercício da cidadania e da liberdade individual, partindo de uma situação de perfeita paridade com todas as demais pessoas. A partir dessa referência inicial de ampla igualdade, abre-se espaço para o reconhecimento de que há situações - e muitas - em que o nível de comprometimento das faculdades associadas à autodeterminação e à manifestação da vontade tornam essas pessoas socialmente vulneráveis, impondo que se estabeleçam medidas que as protejam e as auxiliem a usufruir da vida da melhor forma possível, de acordo com cada caso individualmente considerado.
Essas medidas vêm regular a participação de uma outra pessoa (ou mais de uma, como se verá), que exercerá uma função de especial assistência à pessoa com deficiência, auxiliando-a nos processos decisórios importantes ou mesmo, nos casos em que seja inevitável, substituindo a vontade que já não pode ser manifestada pela pessoa assistida.
São os institutos da Tomada de Decisão Apoiada (TDA) e da Curatela, previstos na Lei. Dessa forma, conforme maior seja a limitação experimentada pela pessoa assistida, maior será o nível de intervenção dessa outra pessoa para resguardar os seus direitos e garantir-lhe a vida digna.
No caso da Curatela, seu alcance deverá também ser sempre o mais restrito possível, preservando ao máximo o exercício da vontade e a autonomia da pessoa curatelada, mas certamente já marcando a substituição da sua vontade nos aspectos em que isso seja indispensável para a proteção dos seus interesses. Esse instituto é de grande importância e exige a intensa dedicação daquele que exerce o papel de curador. Tanto é assim que o já referido Estatuto da Pessoa com Deficiência introduziu no Código Civil o Art. 1.775-A, que passou a permitir expressamente que essa função de curatela pudesse ser exercida por mais de uma pessoa, de forma compartilhada.
Com essa nova conformação, passa a ser possível que as atribuições e responsabilidades no cuidado da pessoa curatelada sejam divididas entre os curadores, possibilitando que cada um possa se dedicar prioritariamente a determinado aspecto para o qual esteja mais apto, aumentando a qualidade da assistência na medida em que passam a ser múltiplas pessoas a dar atenção às múltiplas questões que envolvem o bem estar e a segurança do curatelado.
Mas a flagrante vantagem desse modelo de compartilhamento da curatela encontra seu limite no nível de interação e consenso entre esses mesmos curadores, pois deve-se ter em mente que todos precisam atuar de forma bem articulada e compartilhando do mesmo intuito protetivo e de cuidado da pessoa assistida. Havendo divergências que levem a disputas e embates, esse modelo pode representar também a completa ruína de tudo o que se pretendeu proteger ao instituí-lo.
Por isso mesmo, a adoção do modelo compartilhado de curatela não é obrigatório, ficando sua adoção condicionada ao convencimento do juiz quanto aos efetivos benefícios que tal medida trará para o curatelado, o que requer a análise meticulosa de todos os fatores e interesses presentes no processo.
Preservar e defender os direitos e interesses daqueles que não podem fazê-lo por si próprios é um papel dos mais nobres, que deve ser exercido com o melhor do espírito humano, de forma cooperativa e centrado nos valores do respeito, da dignidade e do afeto, que são os traços que nos distinguem positivamente como espécie dominante e responsável pelo nosso mundo e pelos que nele vivem.